UM OTACÍLIO MAIS "NOVO" DO QUE NUNCA
(Entrevista publicada em novembro de 2008 no jornal Diário de Marília - jornalista Vadinho Doreto)
“A verdadeira caridade é praticada em segredo. A melhor caridade é aquela em que quem a faz, ignora quem a recebe, e quem a recebe, ignora quem a faz”. Aliando a caridade a outras duas virtudes teologais do Cristianismo, a fé e a esperança, podemos definir com exatidão o perfil de Otacílio Augusto Novo, um dos filantropos mais atuantes de Marília e muito conhecido em virtude da “Instalações Record”, empresa de autoelétrica fundada em 1960. Ao completar 75 anos, Otacílio ainda tem a humildade de conjugar o verbo fazer sempre na 3ª pessoa do plural e continua trabalhando cerca de 18 horas por dia com o mesmo viço e energia de um jovem. Orgulha-se de enfeitar a imagem de São Cristóvão, padroeiro dos motoristas, no tradicional desfile realizado todo dia 25 de julho e também de integrar a diretoria da Associação de São Vicente de Paulo, entidade composta por inúmeros cidadãos desprendidos que sempre encontram tempo para cobrir a lacuna deixada pelo poder público, ou seja, aplacar o sofrimento das pessoas carentes. Família também é uma palavra que encabeça o dicionário de Otacílio. Com muito esforço ele conseguiu oferecer um bom estudo aos seis filhos, mesmo com o abalo emocional ocorrido no fatídico mês de julho de 1978, quando sua mulher Elza faleceu precocemente.
Diário de Marília – De onde vem sua ascendência lusitana?
Otacílio Augusto Novo – Por parte do meu avô, que quando chegou ao Brasil instalou-se na cidade de Santa Cruz das Palmeiras, região de Araraquara. Toda minha família é de lá. Meu pai, Gil Augusto Novo, herdou a profissão do meu avô (conferente da Companhia Paulista de Estrada de Ferro) e minha mãe, Leonor Moreira Novo, sempre se dedicou à criação dos filhos: Orfeu, Clóvis, Elza e Eulália já faleceram; o Hélio mora em Campinas, a Salete em Araraquara e meu outro irmão, o Antônio, também reside em Marília.
Diário – O que o trouxe até Marília?
Otacílio – Meu irmão Clóvis já estava estabelecido aqui e era proprietário da farmácia Drogasil, na rua 9 de Julho, bairro Cascata. Isso foi em 1949, quando eu tinha apenas 16 anos. A farmácia foi meu primeiro emprego. Porém, em maio de 1950, meu pai faleceu. Retornei a Santa Cruz das Palmeiras e resolvi trazer todos familiares para Marília.
Diário – E como acomodou a família?
Otacílio – Graças ao Clóvis, que estava prosperando no ramo farmacêutico e teve condições de nos arrumar uma casa, na rua Taquaritinga, 822. Em seguida passei a trabalhar na Carroceria Modelo (ônibus), do Alfredo Gonçalves, onde fiquei por cerca de 10 anos.
Diário – Como o senhor começou no ramo de autoelétrica?
Otacílio – Eu trabalhava na Carroceria Modelo durante o dia, e à noite, para aumentar a renda da família, já que minha mãe sempre estava adoecida, eu ajudava o Esmeraldo Carrijo (faleceu há três meses), proprietário da auto-elétrica Instalações Marília, cuja matriz era na Grande São Paulo. Só que no começo de 1960 o Carrijo retornou em definitivo para a capital e me aconselhou: “Otacílio, abra sua própria auto-elétrica. Fique tranqüilo que eu mandarei para você todo material necessário”. Então, no dia 20 de fevereiro de 1960, com ajuda dos familiares e amigos, eu consegui inaugurar a Instalações Record, que funcionou por 22 anos na rua Taquaritinga, 136.
Diário – Depois a Record precisou ampliar suas instalações?
Otacílio – Se não fosse a bondade dos irmãos Silva (empresa de ônibus) e de um fazendeiro que era o proprietário do imóvel onde a autoelétrica funcionava, com certeza não teria condições de adquirir o barracão na avenida Castro Alves, no Jardim Ohara, que interligava a avenida com a rua São José. Ambos venderam suas propriedades para mim e disseram para eu pagar quando pudesse. Então pude realizar alguns negócios e pagá-los religiosamente. Hoje parte do prédio está alugada para uma transportadora e a Record funciona há 27 anos na rua São José, 226.
Diário – Eles devem ter feito isso por causa do seu caráter, por ser uma pessoa honesta, trabalhadora e caritativa, o senhor não acha?
Diário – É difícil de falar, mas me lembro que tanto na oficina da Taquaritinga quanto no barracão da empresa Silva, havia muitos interessados, todos querendo comprar os imóveis e pagar em dinheiro. Mas os donos insistiam: “Otacílio, nós queremos é vender pra você”. Dizia a eles que tinha algumas economias, mas era muito pouco e não dava pra fechar negócio. Nos dois casos, os proprietários foram até o cartório, passaram a escritura em meu nome, sem eu ter desembolsado um centavo. Realmente foi uma bênção.
Diário – A Record chegou a ter quantos funcionários?
Otacílio – Teve época em que ultrapassou a casa dos 20. Você sabe, entra governo, sai governo, alguns bons, outros um desastre e os encargos sociais são muitos altos, então não dá para contratar muita gente. Mas tenho que citar o Valdelício, meu primeiro funcionário e também o Luizinho e Ticão, que também ficaram comigo 40 anos. Depois de se aposentarem insisti para que também abrissem uma autoelétrica e assim o fizeram.
Diário – E o famoso Gilberto Pereira de Souza, o Gilbertinho, o 14º vereador de Marília?
Otacílio – Praticamente o criei, é como um filho para mim. Começou também a trabalhar da Record desde pequeno e acompanhou toda nossa trajetória de vida. Ele fez por merecer aquela cadeira cativa na Câmara, uma homenagem mais do que justa.
Diário – Atualmente a concorrência é muito grande no ramo de autoelétrica?
Otacílio – Com o crescimento da cidade todo mercado fica competitivo. Quando comecei só havia duas, a do Júlio Ito, na rua Coronel Galdino, e a do Quizo, perto do Mercadão. É uma área em que se uma pessoa tiver muita força de vontade, em apenas quatro meses pode se tornar um profissional. Se não me engano, a cidade deve ter hoje em torno de 70 autoelétricas. O importante é você fazer um serviço correto nos veículos e ser honesto com o cliente.
Diário – Se o senhor voltasse no tempo escolheria novamente essa profissão?
Otacílio – Não tenha dúvida, sempre gostei do meu trabalho e graças a ele pude estudar meus filhos e ajudá-los na sua profissão.
Diário – Dizem que o senhor gosta muito de futebol e que também foi um grande goleiro. Onde o senhor jogou?
Otacílio – O pessoal aumenta muito, eu fui apenas um jogador da várzea mariliense que por muitos anos vestiu a camisa de goleiro do time da Nova Aliança, uma fábrica de doces. Baixinho, eu tinha facilidade de saltar rapidamente e fazer boas defesas. Tive alguns amigos que foram craques, como o Joãozinho, cujo sobrenome não me recordo e o Rubens Paúra, o dono do time. Era uma gostosa diversão como a de todo jovem do nosso tempo.
Diário – O senhor sempre acompanhou o futebol em Marília?
Otacílio – Tive o privilégio de assistir a vários jogos daquele esquadrão do São Bento nos anos 60. Depois veio o Mac, com aquela grande festa pelo acesso em 1971 e que até hoje teve muitos altos e baixos. Vencemos o Vila Nova semana passada e depois de amanhã a gente vai bater o Criciúma. Aí eu acho que dá para escapar do rebaixamento. Porém, não adianta sair do sufoco e no ano que vem acontecer todo esse suplício. É necessário um planejamento bem antecipado e principalmente o apoio do comércio, empresas e outros segmentos. Para uma equipe disputar a série de elite do campeonato brasileiro ela tem que ter uma estrutura bem sólida. Caso contrário vai levar só goleada e ser motivo de chacota em todo Brasil.
Diário – Foi na fábrica Bela Aliança que o senhor conheceu sua primeira esposa?
Otacílio – Sim, a Elza Serapilha trabalhava na fábrica e morava na rua Joaquim Nabuco, 223. Casamo-nos muito jovens, no dia 28 de maio de 1955, na igreja de Santo Antônio. Ela tinha 17 anos e eu 22. Tivemos seis filhos maravilhosos: Solange (psicóloga em Belém do Pará), Norma (gerente financeira da Record), Maria Isabel (professora), Rosana (assistente social), Júnior (empresário, proprietário do Posto Gigantão) e a Fabiana, que é dentista em Santa Bárbara do Oeste. Eles até agora me presentearam com 11 netos (Taciana, Fábio, Alaina, Priscila, Francine, Vanessa, Gustavo, Cauê, Gabriela, Murilo e Rafaela) e duas adoradas bisnetas, a Geovana e a Marina.
Diário – A sua esposa faleceu muito cedo, com quase 40 anos. Como foi essa passagem dolorosa?
Otacílio – Lembro-me como se fosse hoje, o mês era julho de 1978. Cheguei em casa no bairro Maria Isabel às 11h30, pra variar sempre correndo para dar conta do serviço na oficina. Almocei rapidamente e já estava na Kombi quando ela apareceu lá fora e me intimou: “Eu estou com um vestido novo e você nem reparou em mim? Que negócio é esse? Assim vou ficar triste”. Então nos abraçamos bastante e fui trabalhar. Por volta das 14h recebi um telefonema do médico Aurélio da Motta dizendo que minha mulher estava na aula de tricô, passou mal e estava no Hospital Marília. Lá eu só via as enfermeiras saírem da sala de cirurgia com aqueles lençóis molhados de sangue e os comentários eram os mais preocupantes possíveis. A Elza até então era uma mulher saudável, nunca tinha apresentado nenhum problema físico. Ela teve um aneurisma na região abdominal e conseguiu resistir por uma semana.
Diário – Como o senhor superou essa fase?
Otacílio – Olha, com muitas orações, com a ajuda de Deus e o conforto dos amigos. Não foi fácil, principalmente com a Fabiana muito pequena. Mas graças a Ele pude retomar minha vida normal.
Diário – Depois de alguns anos o senhor encontrou o carinho de Cláudia Cortinove, sua segunda esposa. Como foi?
Otacílio – Bom, todo mundo sabe que eu sempre fui muito caseiro, avesso a badalações e festas. Meus filhos ficavam grudados em mim, não admitiam em hipótese alguma eu vir a ter outra mulher. Era uma ciumeira danada. Certa vez, num almoço no salão da paróquia São Miguel, fui apresentado à irmã de um amigo. Mal conversamos, só fiquei sabendo que ela trabalhava no Hospital Marília. Dias depois liguei pra ela. Quando percebi, uma das minhas filhas estava na extensão do telefone. Então eu só pude falar: “Dona Cláudia, quero lhe avisar que seu carro está pronto”. Ela não entendeu nada, disse que não sabia de carro nenhum e até perguntou quem era o louco que estava falando. Pouco tempo depois começamos um relacionamento até nos casarmos. Como é a vida, a Cláudia nem me conhecia e foi uma das pessoas que cuidaram da Elza naquela semana de agonia.
Diário – E quanto aos filhos? Eles aceitaram?
Otacílio – No começo foi uma verdadeira guerra, mas com o tempo foram concordando e hoje sabem que o pai é uma pessoa muito feliz e realizada.
Diário – Mudando de assunto, o empresário Manoel Lopes, da Ótica Brasil, diz pra todo mundo que o senhor merece o título de “Rei da Caridade”. Essa coroa e o cetro são do senhor?
Otacílio – Eu não gosto muito de abordar esse assunto. Sou apenas mais um na Sociedade São Vicente de Paulo, esta sim, uma entidade que é a rainha da filantropia, cujos abnegados membros desenvolvem expressivo trabalho social na cidade. Participo da associação há mais de 40 anos prestando serviço nas suas ramificações, principalmente no Albergue Noturno São José.
Diário – Onde mais os vicentinos atuam?
Otacílio – Em todos locais onde o próximo está passando por necessidade e precisa, além da ajuda material, também de muito amor, carinho e compreensão. Temos a sede na avenida Pedro de Toledo onde são coordenadas todas as ações dos nossos voluntários em creches e outras entidades. O auxílio consiste essencialmente na doação de cestas básicas, mas também nunca deixamos de auxiliar o irmão cuja família está com uma conta de água ou de luz atrasada. Acho que é o mínimo que podemos fazer, proporcionando um pouco de dignidade a uma faixa da população tão sofrida.
Diário – Mas muito desse trabalho é uma obrigação do poder público. Ou não?
Otacílio – Não sou eu quem vai fazer uma análise sobre isso. Todos deveriam seguir os ensinamentos do Pai, principalmente aqueles que ocupam cargos importantes e ganham para isso. Quem se desvia do caminho do bem e segue a trilha da corrupção e da ganância, um dia vai ter que prestar contas lá em cima. Disso eu não tenho dúvida. A fome é uma das maiores violências do mundo. Não é justo tirar um prato de comida de uma criança, principalmente enchendo os bolsos com o dinheiro público.
Diário – O senhor em sua oficina restaura cadeiras de rodas e confecciona andadores e muletas para auxiliar pessoas carentes. Como funciona esse trabalho?
Otacílio – Isso eu faço há muitos anos, mas nas horas vagas. Posso falar que até tenho um convênio, por exemplo, com aquela turma bacana do ferro-velho Luna. Qualquer material que chega lá e que pode ser utilizado para esse fim, eles me avisam. Vou buscar e esse reaproveitamento se transforma em cadeiras de roda, andadores e muletas. Só que eu apenas os empresto, eles não são doados. O pessoal devolve certinho porque sabe que outras pessoas irão precisar. Às vezes o equipamento retorna com algum defeito, mas a gente dá uma retocada e tudo fica novo. Quem necessitar, pode passar na minha oficina. É mais uma atividade que nunca vamos interromper, porque a esperança nos leva à luta.
Diário – Há quantos anos o senhor decora o andor com a imagem de São Cristóvão no Dia dos Motoristas?
Otacílio – Há 50 anos, desde a criação da Associação dos Motoristas da Alta Paulista, da qual sou um dos fundadores. É gratificante poder organizar essa festa em prol de uma categoria pouco valorizada. Não há dinheiro que pague o motorista receber uma bênção e ter fé que dias melhores virão.
Diário – Antigamente esse evento, após a carreata pelas ruas de Marília, terminava na sede campestre da entidade, na avenida João Ramalho, com muita comemoração. Por que isso acabou?
Otacílio – Eu não gosto de falar sobre política, mas a verdade é que a entidade acabou virando trampolim eleitoral e aí foi uma tragédia. Não vou citar nomes. A sede foi vendida e não foi dada nenhuma satisfação. Depois de muita insistência conseguimos fazer que outra área fosse adquirida. O terreno está lá, às margens da rodovia para Lins, abandonado à própria sorte. Nesse episódio há muitos fatos obscuros que até hoje não foram esclarecidos. Tem gente que precisa prestar conta e explicar como conseguiu acabar com esse lazer da categoria.
Diário – Só uma pergunta sobre política: quem foi o melhor prefeito da história de Marília?
Otacílio – Falar sobre isso é complicado. Cada um teve seu mérito e alguns nem deveriam ter tomado posse. É como eu já disse: quem errou, erra ou vai errar com terceiras intenções, não ficará impune no tribunal divino. Eu, particularmente, gostei muito do Pedro Sola, principalmente porque era uma pessoa simples, andava e conversava com o povo sem maiores formalidades.
Diário – Quais foram as principais homenagens que o senhor recebeu?
Otacílio – Os títulos de Cidadão Mariliense, Passarin de Bronze e Menção Rotária “4 de Abril”. Mas a maior homenagem mesmo foi Deus ter me guiado para essa cidade maravilhosa, de uma gente hospitaleira, onde constituí família e sou feliz. O tempo me dá a certeza que só através de atitudes a gente pode melhorar a vida do nosso semelhante e o rumo de uma cidade. O cidadão tem que se conscientizar que a atitude sobrepõe a fortuna, o êxito, o revés, tudo aquilo que já passou e também o comportamento das pessoas. Ainda há tempo para que qualquer um tome uma atitude. Veja bem, o dia que vai nascer amanhã ainda não foi tocado, está puro como uma flor do campo. Nada impede que ele seja seu.
FRASES DO ENTREVISTADO
“O importante é a honestidade com o cliente”
“Os corruptos serão julgados por Deus”
“A política acabou com o único lazer dos motoristas”
“O Pedro Sola era realmente uma pessoa do povo”
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