CANTOR E ALFAIATE, JOÃO CALANDRIM TEM HISTÓRIA EM MARÍLIA
Se o professor Isaac Elias Farath (entrevistado pela coluna em 19/10/2008) deu aula de Educação Física para metade de Marília, com certeza a outra metade se casou na voz do tenor João Calandrim. E a música não é a única paixão desse católico fervoroso. Ele exerce há mais de meio século a arte da alfaiataria e nos anos 50 quase chegou a ser um jogador profissional de futebol. Na entrevista concedida ao Diário, Calandrim discorreu sobre sua vida, enfatizando a valorização da família, a luta incansável para que a profissão de alfaiate sobreviva e alguns casos curiosos nas centenas de matrimônios que testemunhou. Também fez algumas considerações sobre a cidade. Disse que somente com união política o problema do abastecimento de água na cidade será solucionado definitivamente. E que também falta investimento da Administração para suprir a carência de esporte e lazer nos bairros.
Diário – O senhor vem de uma família humilde?
Calandrim – Sim, e me considero um abençoado, talvez por ter nascido no Natal de 1936, na cidade de Dois Córregos, região de Jaú. Meu pai, Guilherme, era funcionário da Companhia Paulista de Estrada de Ferro, e minha mãe, Maria, costureira. Tenho três irmãos, Pedro, Antônio e Natalina e, em 1947, quando eu tinha 11 anos, chegamos a Marília.
Diário – Por que essa mudança de cidade?
Calandrim – Porque meu pai foi transferido. Quando chegamos, fomos morar na avenida Pedro de Toledo, 1797, bairro Palmital. Eu e meus irmãos continuamos os estudos na escola Thomaz Antonio Gonzaga.
Diário – É verdade que o senhor pegou cedo no batente?
Calandrim – Ao completar 12 anos minha mãe disse que eu precisava trabalhar. Ela era costureira e fazia calças masculinas para as alfaiatarias. Isto é, as calças já vinham cortadas e ela as costurava. Cresci vendo minha mãe sentada em sua máquina, costurando, fazendo barras, passando e sempre lidando com as agulhas. Certo dia fiquei sabendo que a Alfaiataria Caliman, que ficava na avenida Sampaio Vidal, estava precisando de um garoto para recados, cobranças e que também soubesse fazer barras de calças. Consegui o emprego. O engraçado foi que tive levar uma cadeira de casa, senão teria que trabalhar no chão. Nunca mais parei. Fui aprendendo todos os macetes desse ofício até me tornar um profissional. Devo muito ao Horácio Batista, meu maior incentivador. Quando ele se mudou para São Paulo, fui trabalhar na Alfaiataria Carioca, onde me especializei na confecção de calças e ternos masculinos.
Diário – Quando o senhor conseguiu montar a própria alfaiataria?
Calandrim – Foi em 1959, na rua Paraná, 154. Época áurea em que cheguei a ter cinco funcionários. A loja ficava ao lado de um bazar, que pertencia à mãe do Walcyr Carrasco, jornalista e um dos expoentes da teledramaturgia brasileira. Walcyr naquela época era um garoto que gostava muito de brincar nas ruas.
Diário – É impressão ou os alfaiates estão desaparecendo do mercado?
Calandrim – Infelizmente é a dura realidade. Como presidente do Clube dos Alfaiates desde 1984, estou sempre promovendo cursos para que surjam novos profissionais. Desde que assumi essa função luto para manter o clube em franca atividade. Temos na sede salas exclusivas para eles trabalharem, diversos eventos sociais e até conseguimos uma chácara para o lazer da categoria. Mas isso ainda é pouco. A mentalidade das pessoas precisa ser mudada. Veja o exemplo. Antigamente só existiam barbeiros, nunca ninguém tinha ouvido falar em cabeleireiro masculino. Quando esses apareceram, o preconceito foi terrível. Todo mundo era tachado de desmunhecado. Tanto o dono do salão, quanto os frequentadores. Eram até hostilizados por alguns setores sociais. Um absurdo. Hoje praticamente você não encontra mais barbeiro. Tudo é uma questão de cultura. Seria o mesmo que trocar o nome de alfaiate para costureiro. No passado o impacto seria idêntico. Quem sabe assim, hoje em dia, a situação melhorasse para nós.
Diário – Será que para a maioria do consumidor o terno feito artesanalmente não tem o preço muito salgado?
Calandrim – Fica até mais em conta hoje você fazer um terno do que comprá-lo pronto na loja. Um terno, com um bom tecido, custa no comércio em torno de R$ 600,00. No alfaiate, você vai gastar um pouco menos e outra, a roupa vai ser feita sob medida. Há alguns dias eu vi um advogado de estatura baixa, vestindo um terno cujas mangas pareciam que iam bater nos joelhos. Conclui-se que esse cidadão é avesso à elegância.
Diário – Ele deveria procurar um alfaiate?
Calandrim – Exatamente, porque o alfaiate é ideal para os homens que não têm manequim. Quando você chega numa loja, vai encontrar roupas de três tamanhos: pequeno, médio e grande. E quem não tem uma boa modelagem? A opção correta é o alfaiate, que vai lhe proporcionar a indumentária ideal para o seu padrão. Ou você acha, por exemplo, que o Jô Soares vai encontrar no comércio um terno com as medidas dele? Tem pessoas que preferem roupas prontas, que mesmo com alguns ajustes, vão deixá-las ridículas.
Diário – Então não está fácil para um alfaiate ganhar dinheiro?
Calandrim – Sei que em São Paulo o mercado ainda é muito competitivo. Mas no interior, você tem que se virar sozinho. Antes havia o calceiro, paletozeiro, quem cuidava só da gola, da manga... Hoje, ao contratar um auxiliar, você paga para trabalhar.
Diário – Conte algum caso engraçado que aconteceu com o senhor nessa profissão.
Calandrim – Numa época em que eu estava carregado de serviço, acabei atrasando o terno de um noivo. No dia do casamento, ele já estava na igreja e eu ainda ajustava a roupa na minha loja. Conclusão: chamei um táxi e fui fazendo o alinhavo até chegar na igreja. Lá, com ajuda dos amigos, vestimos o rapaz no jardim e acabou dando tudo certo.
Diário – O fato de ser de família muito religiosa alterou seu comportamento na juventude?
Calandrim – Marília nos anos 50 tinha as diversões que alguns entrevistados por esta coluna já citaram. A moda mesmo eram as quermesses e o footing, que começava no Jardim São Bento e depois as pessoas seguiam para a praça Saturnino de Brito, onde a paquera acontecia às quintas-feiras, sábados e domingos. Uma opção também era o restaurante Marília, pra quem tinha um poder aquisitivo melhor. E, é claro, os bailes no Clube dos Alfaiates, que esticava a madrugada do mariliense.
Diário – No footing havia algum preconceito de classe social?
Calandrim – Havia sim, dava para perceber de acordo com os grupos que se formavam. Porém, nada se compara ao que acontecia em Jaú. Você sabia que lá o flerte girava em torno de duas praças, uma freqüentada por brancos e a outra por negros?
Diário – Também para se distrair, o senhor trocava o óleo atrás da igreja Santo Antônio?
Calandrim – Pára com isso, Doreto! Eu era um Congregado Mariano e isso não era bem visto pela entidade. Mas esse local era muito freqüentado por pessoas de todos os tipos. Não só lá, mas outras “casas do ramo”, como bem citou aqui o Valdyr Cezar.
Diário – Quando o senhor descobriu sua vocação para cantor?
Calandrim – Meus familiares sempre participaram das missas e atividades da Catedral de São Bento. E foi nas missas que eu aprendi a desenvolver esse dom, sempre incentivado pelo padre Ferrúcio e pelo maestro Amaral. Também cantava na Juventude Católica, onde fiz parte da diretoria juntamente com os amigos José Vieira da Costa, Luiz Vieira da Costa, Angelino Doreto Campanari, Mário Alves, Nerino Martinez, Amaro Francisco de Souza e Benedito Tonezi. Vale lembrar que existia a “Caravana da Juventude Católica”, bastante solicitada na região por englobar eventos diversificados, sempre levando alegria ao público e recebendo muitos aplausos. Quantas saudades!
Diário – E os corais? Em quais o senhor soltou a voz?
Calandrim – O do Sagrado Coração de Jesus, comandado pela irmã Beatriz, o São Bento, do professor Geraldo, o Fazendário, o da AABB, entre outros. Porém o mais marcante foi o da Catedral, principalmente quando recepcionamos a chegada do bispo dom Hugo Bressane de Araújo a Marília.
Diário – E sua participação nos programas de rádio?
Calandrim – Era tudo ao vivo, por volta de 1960, com os concursos de calouros lotando os auditórios, sobretudo porque não havia televisão. Minha primeira apresentação foi na rádio Dirceu, que funcionava na rua dom Pedro esquina com a São Luiz. O Miguel Neto comandava tudo. Após minha estréia, gostaram tanto que na outra semana eu já estava contratado. Na rádio Clube, que ficava no começo da rua Paes Leme, havia o Joaquim Sabonetão Dias que também levava os cantores para shows em várias cidades. Minha maior inspiração era o Vicente Celestino. No dia em que ele morreu, fiz uma programação especial de duas horas na rádio só com suas músicas. Sempre fui um seresteiro autêntico.
Diário – Algum momento inesquecível nessa época?
Calandrim – Muitos, mas um é especial. Certa vez o Sabonetão nos levou para um show em Andradina. Casa cheia. Além dele (samba e rock), se apresentariam o Bolinha e Esmeralda no estilo sertanejo (dupla que depois se chamaria Abel e Caim) e as Irmãs Martinez (guarânia). Não sei o que aconteceu naquela noite, mas o público não estava gostando de nada. Estava impaciente. Então o Sabonetão chegou em mim e disse: - Só falta você pra cantar, pelo amor de Deus, veja se salva a gente. Aí eu subi no palco já cantando o hit espanhol Granada, do Russel Watson: “Granada, tierra sonada por mi, mi cantar se vuelve gitano cuando es para ti...”. Não me deixaram mais largar o microfone.
Diário – Com foi a carreira solo?
Calandrim – Comecei cantando nas igrejas acompanhado pelo maestro Amaral (teclado), José Ferreira (violino), Inesito (violino), João Anequini (flauta) e José Panunzio (contrabaixo). Um show!
Diário – Nos casamentos o tenor Calandrim era uma das atrações?
Calandrim – Acho que o pessoal gostava, porque convites eram aos montes. Tenho orgulho de circular hoje na cidade e encontrar pessoas que falam: o senhor cantou no meu casamento, cantou no do meu filho... e assim vai. Nessas cerimônias, é claro, as fotos eram em preto e branco e não existia filmadora. O que eu fazia? Levava comigo meu gravador e registrava todo o casamento. Depois dava a fita para os noivos como lembrança.
Diário – Casamento é sinônimo de fatos curiosos. Ou não? Dá para o senhor revelar alguns?
Calandrim – Num matrimônio na década de 60, está lá o noivo no altar e nada de a noiva aparecer. Acontece que os parentes dela que vieram de outras cidades, ficaram sabendo de umas coisas, que prefiro não revelar, e encheram de minhoca sua cabeça para que ela desistisse de trocar alianças. E assim foi feito. Depois de muito tempo de espera, o noivo anunciou o cancelamento, mas garantiu: a festa vai acontecer. E foram somente os convidados do noivo para a festa. Um outro caso foi muito interessante. O rapaz era funcionário do Bradesco e depois de duas semanas do matrimônio, fui levar para ele a fita. Ele me disse sem rodeio: já larguei a mulher, o que eu vou fazer com isso?
Diário – Cite mais algumas passagens.
Calandrim – Num casamento de duas famílias bem abastadas, o fotógrafo não apareceu e não havia nenhum registro da cerimônia. E lá fui eu levar minha famosa fita do gravador. O pessoal ficou tão agradecido com aquela “relíquia” que me deu uma generosa recompensa financeira. Coisa do tipo de não precisar trabalhar por um ano. Mas o gravador também me traz péssima recordação. No dia do meu casamento, meu amigo Gaspar ficou de fazer a gravação. E não é que ele se atrasou e só chegou só quando todo mundo estava deixando a igreja? Aí quem se deu mal fui eu.
Diário – E por falar no seu casamento, como a Maria Garcia entrou na sua vida?
Calandrim – O ano era 1961 e fui cantar no casamento do meu amigo Angelino Doreto. Lá conheci a Maria Garcia. Olhamo-nos, namoramos e nos casamos em 1963. Ela é filha do Antônio Garcia, que tinha uma loja de artigos religiosos, e da Encarnação Garcia, a famosa Vó Nena, que hoje está com 97 anos. Quem não se lembra das aventuras da Vó Nena, principalmente quando saltou de pára-quedas com mais de 80 anos? A Maria era funcionária da secretaria da Fazenda. Estamos casados há 46 anos. Temos quatro filhos (João Guilherme, Mariângela, Maria Cláudia e Marilena) e seis netos, Aline, Alesca, Bárbara, Maria Luiza, Maria Eduarda e João Antônio. O episódio mais triste da minha vida aconteceu em 2002, quando perdi meu netinho Gabriel, num acidente na via Dutra. Essa dor me abalou demais e por um certo tempo cheguei a abandonar os casamentos e as festas. Mas nunca deixei de reunir todos familiares para o almoço aos domingos.
Diário – E o futebol?
Calandrim – Era zagueiro e nos anos 50 jogava na equipe da Juventude Católica. Depois fui contratado pelo Bela Vista de Echaporã, que tinha muito dinheiro e era um celeiro de craques. Quando cheguei lá, com aquele cabelão vermelho, já me apelidaram de Ruano. Meu orgulho foi ter deixado o Jurandir de Freitas (São Bento, São Paulo e Seleção Brasileira) na reserva. Ele chegava em mim e dizia: você tem que dar carrinho, entrar rasgando, chegar junto. Mas, modéstia à parte, eu tinha muita técnica e jogava bem. Só não segui em frente por causa da família.
Diário – Qual sua análise sobre o Mac?
Calandrim – Temos que bater palmas para o time, pois ele divulga o nome de Marília em todo Brasil. Infelizmente atravessa uma fase ruim, mas vai sair dessa situação incômoda, fazer um bom campeonato Paulista e, quem sabe, conseguir o acesso em 2009.
Diário – O senhor também foi candidato a vereador?
Calandrim – Sim, na década de 70, e quase fui eleito. Valeu pela experiência. Conheci muitos prefeitos e fui amigo de todos. Hoje a gente vê a classe política desunida e isso é ruim para a cidade, que precisa reunir suas forças vivas, todos segmentos expressivos e dissipar de vez a questão da falta de água. Também queria mandar um recado para o prefeito para que termine logo o ginásio de esportes e construa praças esportivas nos bairros. Não podemos parar no tempo. Na minha época, até pulávamos o portão do Abreusão para usar a pista de atletismo. O investimento no esporte vai revelar talentos. Aí você não precisa gastar rios de dinheiro contratando atletas de fora para representar Marília em competições importantes.
Diário – Quantas homenagens recebeu até agora?
Calandrim – Cantei o Hino a Marília em todas as escolas e fui homenageado pela secretaria da Cultura. Também recebi um cartão de prata pelos serviços prestados ao Clube dos Alfaiates. Evidente que guardo um ressentimento por meu trabalho nunca ter sido reconhecido pela Câmara Municipal. Mas é uma satisfação estar morando aqui há 60 anos, onde tive meus dias de glória e constituí família, minha grande riqueza. Por isso que continuo adorando esta cidade que me acolheu com amor e carinho. Agradeço a Deus todos os dias por ter me dado esse dom da voz e a muitos amigos que me ajudaram, como o padre Ferrúcio, os maestros Amaral e Zezinho, a dona Wanda Zaros, a Ana Maria e o Richard.
Entrevista publicada no dia 16 de novembro de 2008 no jornal DIÁRIO DE MARÍLIA – Jornalista Vadinho Doreto
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