Ele vem de uma família muito humilde que às vezes só tinha como refeição uma polenta dura, alface e café puro. Aprendeu com 15 anos o ofício de contabilista e trabalhou em várias empresas de Marília. Queria ser militar, mas o amor pela música teve um acorde mais profundo. Acompanhou em bailes e shows expoentes da música popular brasileira, como Dick Farney, Silvio Caldas, Orlando Silva, Agostinho dos Santos e até Chico Buarque. Ele não é muito sintonizado com a política, mas se exercesse um cargo público lutaria para instituir a Bíblia e o dicionário nas escolas. A coluna de hoje retrata a trajetória do chavantense Erasmo Gonçalves Viana, um amante da leitura, que no dia 23 de abril vai completar 74 anos de idade e 69 anos de Marília.
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Diário de Marília – É verdade que seu pai era um sujeito do tipo linha-dura?
Erasmo Gonçalves Viana – Ele não era de conversar. Só o necessário. Chamava-se Raimundo Gonçalves Viana, nascido na cidade baiana de Caculé. Pouco sei sobre sua origem. Maria Aparecida Cânola, minha mãe, nasceu em Torrinha, região de Jaú. Administrador de fazenda, papai faleceu em 1975 e mamãe em 1982. Papai era uma pessoa muito sisuda e séria, daquelas que a gente tinha que pedir a bênção antes de dormir e ao se levantar. Ele mal conversava, mas sempre estava atento a tudo e não admitia condutas reprováveis. Sempre ensinou os 11 filhos a trabalhar desde pequenos e a serem honestos.
Diário - O senhor pegou cedo no pesado?
Erasmo – E como! Eu nasci em 1935 na cidade de Chavantes, região de Ourinhos. Pra ser mais exato no distrito de Irapé. Meus irmãos Nelson, Anselmo, Iracema e Maria já faleceram. Álvaro, Deoclécio, Irene, Íria, Inês e Ida também residem aqui. Quando eu tinha cinco anos (1940) nós chegamos a Marília e papai foi trabalhar na famosa fazenda Flor Roxa. Aí eu já arrancava algodão e amendoim. Era uma vida muito sofrida. Para você ter uma idéia eu só vim a sentir o sabor de um refrigerante com 9 anos, quando viemos para a cidade. Nossa primeira residência foi na rua 15 de Novembro, na Vila São Miguel, em uma casinha de tábua bastante surrada.
Diário – Era a esperança de uma vida melhor?
Erasmo – Com certeza, na cidade teríamos escola e também mais trabalho. O começo foi terrível, com a falta de dinheiro nos privando de muita coisa.
Diário – O senhor chegou a passar fome?
Erasmo - Veja bem, analise como você quiser. Passar fome é uma coisa e ter vontade de comer algo é outra. Em alguns períodos a fase foi extremamente crítica. Pela manhã um cafezinho preto e polenta dura. No almoço polenta e umas folhas de alface. No jantar estava lá de novo a polenta. Éramos muito pobres.
Diário – E os estudos?
Erasmo – Eu achei que daria para conciliar a escola com o trabalho. Mais um engano. Cursei até o 4º ano primário no 3º Grupo Escolar da Vila São Miguel. Lembro-me das professoras Olga, Cecília e Celina e do diretor Augusto Luís Groman. Tinha diversos amigos: Mariano, Adelino Miguel (Pingüim), Moacir, José What [sobrenome impronunciável], João Babone e o Osni, que morreu quando a gente pegava uma rabeira de caminhão. Ele escorregou e bateu a cabeça. Quanto aos estudos, tive mesmo que parar. Tinha que trabalhar para ajudar no sustento de casa e ver se conseguia tirar um pouco a polenta do “cardápio”.
Diário – E depois?
Erasmo – Com 15 anos (1950) arrumei, vamos dizer assim, o que posso chamar de primeiro emprego. Foi no escritório de contabilidade Lux, que ficava na rua Coronel Galdino, de propriedade do doutor Luis Scaglion. Eu fazia de tudo, até faxina. Mas foi ali que eu aprendi o ofício de contabilista. Fui me esforçando, aperfeiçoando e exerci essa profissão por quase meio século, mesmo tendo me aposentado no começo dos anos 80. Eu sempre gostei muito de ler. À noite, às vezes até na madrugada, eu sempre estava com um livro. E esse amor pelas letras foi a “faculdade” que eu nunca tive condições de cursar. Uma daquelas professoras do primário um dia me disse: “Procure sempre os livros, os seus melhores amigos e seja feliz. Quem não lê, mal ouve, mal fala e mal vê”. Hoje tenho orgulho da minha modesta biblioteca.
Diário – E onde mais o senhor trabalhou?
Erasmo – [sem cronologia] Nos escritórios Record (Yakishiko Imamura), Marília (Rubens Okoti e Albamir Bastos Esteves), Real (Toninho), Cinco Estrelas (Antônio Bento), Papelamar (José Lozano e Rubens Okoti), Transer Terraplanagem (José Lozano), Comércio de Aparas São Sebastião (Geraldo Sola), Saad Chueire (Emille Baaklini), Comasa (Antônio Freire) e, por último, no escritório Mauá, do Carlos Temporim.
Diário – Nunca conseguiu ser patrão?
Erasmo – Não teve jeito, mas isso é o de menos. O importante foi ter executado minha função com honestidade, simplicidade e sempre fazendo muitos amigos.
Diário – E o esporte?
Erasmo – Joguei pouco tempo na várzea, defendendo as cores do Matarazzo e da Mesbla. Era ponta-esquerda. Também jogaram nesses times o Santo Preto, Santo Branco, Lauro e o Mauro Fiorini.
Diário – Como a dona Ordália entrou na sua vida?
Erasmo – Eu conheci a Ordália Barbosa mais ou menos em 1960, quando me apresentava com um grupo musical no auditório da rádio Clube. Ela estava na primeira fila. Olhamo-nos e nos apaixonamos. O casamento veio em 16 de janeiro de 1966, na Igreja de Santo Antônio. Ela sempre foi muito caseira e isso ajudou bastante nos meus compromissos musicais. Temos cinco filhos: Edmir (contabilista da Jacto e professor da Unimar), Patrícia (professora de idiomas na USC de Bauru), Luciana (professora de Biologia em Cornélio Procópio), Renata (professora de Emei em Marília) e Adriano (professor da área de tornearia mecânica). E então, percebeu que todos são professores? Com certeza os influenciei a mergulhar nos livros. Meus netos são o Victor Hugo, Guilherme, Lara, Pedro, Carolina, Giovana, Gabriel e Gabriela.
Diário – E a música, começou quando?
Erasmo – Também aos 15 anos, quando ainda sonhava em ser militar. Eu tinha muita amizade com o Dito Sapateiro, lá da avenida Castro Alves. Ele iria ter sua primeira aula de violão com o professor Joãozinho Correa Neto, que morava numa pensão da rua Cel. Galdino. Tímido, o Dito me convenceu a acompanhá-lo. Depois da aula, o professor Joãozinho, um dos mais talentosos músicos que conheci, olhou pra mim e disse: “Você tem cara de violonista. Quer aprender?”. E na mesma hora ele me ensinou a nota “Lá Maior”. Fui para casa todo empolgado, peguei um velho violão do meu irmão e comecei a arranhar. Resumindo, só tive duas aulas com o Joãozinho. O resto veio com muito amor e dedicação.
Diário – E quando aconteceu a primeira apresentação pública?
Erasmo – Foi com o Conjunto Regional do Valdivino Dias, na rádio Dirceu. O Valdivino no violão, Deodato Stefanini (acordeão), Brotinho (ritmista), Landinho (cavaquinho) e eu fazia o segundo violão. Foi uma fase inesquecível de Marília, com os auditórios das rádios lotados todas as semanas. Um verdadeiro show!
Diário – O senhor também integrou a famosa orquestra do Feis Feres?
Erasmo – A vida apronta cada uma! Tocar na orquestra do Feis era a glória para qualquer músico da época. E o professor Joãozinho era o titular da guitarra. Numa certa ocasião ele me procurou, disse que precisava viajar e pediu para substituí-lo numa domingueira no Clube dos Alfaiates. E lá fui eu, sem conhecer ninguém e com pouca experiência nesse tipo de banda, que reunia 18 profissionais. Pra começar, o porteiro do clube não queria nem me deixar entrar. Perguntava quem eu era. Depois de alguns contatos, consegui localizar o Feis (que eu também não conhecia pessoalmente), apresentei-me e expliquei sobre o Joãozinho. Ele só me disse: “Vai lá e pega aquela guitarra”. Guitarra? Eu que só sabia alguma coisa de violão. Tremedeira total. Começou o baile. Depois de algumas músicas, a orquestra parou. E alguém gritou pra mim: “Faz o meio!” E a orquestra parada. E o cara gritando, sem parar: “Faz o meio! Faz o meio!” Como eu permanecia estático, então outro músico falou: “Toca uma música!”. Aí eu comecei a solar “Casinha Pequenina” e depois o bolero “Non ti rent car”. No final do baile, cheguei no Feis, pedi desculpas pelo vacilo e ele só falou: “A partir de hoje você não sai mais da orquestra”. É claro que só depois vim saber que o tal “meio” é um revezamento para que alguns músicos possam descansar. Ainda com o Feis participei da primeira formação do Transa Som. Também foram muitos anos de sucesso, com apresentações por todo o Brasil e incontáveis carnavais.
Diário – Onde mais o público ouviu os acordes do Erasmo Gonçalves Viana?
Erasmo - Eu exaltei o nome de Marília quase que em todo Brasil. Muitas vezes não tinha um conjunto fixo. Mas se havia um baile, um show, qualquer outro evento festivo, eu era chamado. Mas, vamos lá. Além do Conjunto Regional e das bandas do Feis Feres, toquei no Leopoldo (antes Nelson de Tupã), Icaraí (Rio Preto), Brotinho e seu Conjunto, Musical Novo Rio, Sentimental Boys, O Som, Jovens do Ritmo, Los Sagales, Osvaldo Jardim (Assis), Paulinho e seus Be Boper´s (Bauru), Hamil-Tons, O Som e Rosa dos Ventos. Atualmente continuo participando do grupo Status: a sensacional cantora Marina, Jorginho no teclado e o vocalista Cacá. .
Diário – Quais ases da MPB que o senhor acompanhou em shows e bailes?
Erasmo – Moacyr Franco, Agnaldo Rayol, Roberto Luna, Gregório Barros, Nelson Gonçalves, Maysa, Silvio Caldas, Chico Buarque, Orlando Silva, Wilson Simonal, Germano Mathias, Peri Ribeiro, Lúcio Alves, Dick Farney, Doris Monteiro, Maria Alcina, Emilinha Borba, Nora Nei, Agostinho dos Santos, Jerry Adriani, Cauby Peixoto e muitos outros. Meus filhos até hoje não se conformam que eu não tirei uma foto e nem peguei um autógrafo desse pessoal. Eu falo para eles: o importante é que eu estive lá, estive com essa constelação, o que me deu muito prazer.
Diário – Um currículo impressionante. Evidente que aqui nesta coluna não temos espaço para o senhor comentar sobre alguns momentos especiais que teve com esses ícones da MPB. Mas de algumas passagens o senhor se lembra, não é?
Erasmo – Alguns deles como o Agostinho dos Santos, o Orlando Silva, o Silvio Caldas e o Roberto Luna me convidaram para acompanhá-los em turnês pelo Brasil e até pela Europa. Preferi ficar com os pés no chão e não me arrependo. A música, além do prazer, também me ajudava no orçamento em casa, já que nunca deixei de trabalhar como contabilista. E esse meio musical às vezes é algo ilusório, é perigoso. Viagens, hotéis de luxo, mulheres bonitas, jogatina, bebidas, drogas, enfim, se o cara não tiver cabeça ele perde tudo que tem, inclusive a família. Isso aconteceu com vários amigos e alguns deles chegaram até a perder a vida.
Diário – Seria aquele velho adágio, “vale mais uma teta na boca do que duas no sutiã”?
Erasmo – Exatamente. E se eu me enveredasse mundo afora com esse pessoal e nada desse certo? Poderia cair num poço sem fundo, em tentações, ou seja, uma viagem sem volta. Eu tocava, ganhava o meu cachê, tinha minha profissão fixa de contabilista e, é claro, o mais importante, a família. Estava bom assim. Há muito preconceito com a palavra músico. A impressão que se tem é de que todos são boêmios. Pelo contrário, o profissionalismo em primeiro lugar. Eu às vezes tomo uma taça de vinho no almoço, a sagrada cervejinha, mas trabalhando, jamais.
Diário – Fale sobre o Chico Buarque.
Erasmo – Um gênio, muito tímido. Acompanhei-o em várias cidades, principalmente no começo dos anos 70. Uma pessoa simples, que adorava um boteco de esquina para tomar uma pinga. Certa vez em Bauru ele tinha tomado tanto que só Deus sabe como conseguiu cantar. Ele dava umas enroladas e no fim saía tudo bem. A simplicidade desse moço me marcou muito. É inteligente como poucos e o Brasil deve muito a ele.
Diário – E os outros famosos?
Erasmo – Não me recordo o nome da cidade, mas fui chamado para acompanhar a Maria Alcina. Pediram que eu fosse até o “camarim” para avisá-la que estava na hora de o show começar. Quando entrei, ela estava dando uns gritos, com algumas velas acesas, incenso pra todo lado e eu quase morri de susto. Depois ela me disse que estava pedindo ajuda aos orixás pra que tudo corresse bem. Ela era engraçada. Nos shows ela cantava a música Bacurinha: “..Papai, ai que calor, calor na bacurinha, calor não é na tua, ai ai ai, pai, é só na minha...”. E bacurinha é isso mesmo que você está pensando. Então ela passava o microfone na “bacurinha” e depois o esfregava na cara dos músicos. Era uma palhaçada só.
Diário – E o Nelson Gonçalves?
Erasmo – O cara era fera. Certa vez, show em Marília, casa mais que cheia. Antes de começar a primeira música, Boneca de Trapo, ele olhou para o Deodato Stefanini e disse: “Maestro, Mi Maior”. Só que o Stefanini nunca gostou desse tom, achava-o meio caipira. E falou pra gente: “Vamos de Mi Bemol Maior. É apenas meia nota abaixo e ele nem vai perceber”. O que é verdade, dificilmente um profissional consegue notar a diferença. Quando o Nelson começou a soltar a voz, mandou parar tudo imediatamente. Olhou bravo para o Stefanini e disse: “Maestro, eu falei Mi Maior”. Aí foi uma beleza. Depois do show eu fui falar com ele. Perguntei como percebeu que a nota estava errada. E ele me falou: “Meu filho, essa é a minha voz, se o tom não estiver de acordo, ela não sai nem f...”.
Diário – Dá para o senhor contar mais alguns fatos que ocorreram em Marília?
Erasmo – Foram muitos. Teve dois casos de bateristas que foram cômicos. Um foi no Cabaré Guarany. O cara, mamado, deu uma batida muito forte, acabou caindo para trás e levou a bateria junto com ele pela escada. Numa outra ocasião, tinha um baterista que bebia muito. Ele já tinha caído três vezes. O que nós fizemos? Amarramos o rapaz numa viga e aí ele tocou o baile todo sem cair. Mas em muitos bailes teve músico que caiu com o instrumento, dormiu em cima do teclado, enfim, quando isso acontecia o público acabava levando na brincadeira.
Diário – E o incêndio no Clube do Novaes?
Erasmo – Eu integrava o conjunto Jovens do Ritmo. Estávamos passando o som à tarde e uma mulher limpava o piso do salão com gasolina. De repente começou a pegar fogo perto da cozinha e até percebi um botijão de gás vazando. Fomos arrancar as cortinas do salão para abafar as chamas, mas a tal mulher fez um escândalo tão grande e não deixou. Sei lá se ela era a dona das cortinas. O fogo se espalhou rapidamente e em 10 minutos todo barracão estava destruído. Ainda conseguimos salvar alguns instrumentos. Veja você, por causa de uma mulher que não queria estragar as cortinas, aconteceu tudo isso. E a maior sorte foi o botijão não ter explodido.
Diário – O senhor também dá aulas de violão. Qual método adota?
Erasmo – Eu abomino esse negócio de partitura. Primeiro é preciso educar o ouvido, por isso ensino todos os fundamentos aos alunos, a definição dos termos musicais e como executá-los. Eles precisam saber o que estão fazendo. Precisam conhecer por que o tal tom existe. Precisam conhecer as músicas do passado, aquelas letras maravilhosas e não apenas esses axés, forrós e outros gêneros que não têm nenhum enredo. Porém, sem esforço do aluno e muito treino, o aprendizado fica comprometido.
Diário – Sabe-se que o senhor não gosta muito de política. Mas, caso fosse o prefeito, o que faria na cidade?
Erasmo – Eu não sou a pessoa indicada para falar sobre os problemas da cidade. Aqueles que exercem cargos públicos são pagos por nós para isso, sabem das suas obrigações e precisam trabalhar com seriedade e honestidade. Mas se um dia fosse um político, iria lutar para que a Bíblia e o dicionário constassem da grade escolar. Como disse Nelson Mandela, “a educação é a arma mais poderosa que você pode usar para mudar o mundo”.
Diário – Quer deixar uma mensagem para a população?
Erasmo – Apenas que sou uma pessoa realizada, tenho uma família maravilhosa e amo demais essa cidade e seu povo. Sou muito feliz, porque moro na melhor das Américas, no melhor País, no melhor Estado, na melhor cidade e na melhor rua.
ENTREVISTA PUBLICADA NO DIA 1/2/2009 NO JORNAL DIÁRIO DE MARÍLIA PELO JORNALISTA VADINHO DORETO.
HOJE - DIA 13 DE NOVEMBRO DE 2023 - Não tenho notícia do Erasmo. Gente simples, gente nossa! Merecia até um título de Cidadão Mariliense, você não acha? Eles homenageiam cada Zé Ruela!!! Não faz muito tempo deram a láurea para uma senhora, superintendente de um hospital, que há dois dias deixou o ar-condicionado pifar na UTI. Isso é algo que tem que ser arrumado na hora. Imagina o cara na UTI, no bico do urubu... e ainda enfrentar esse calor de 40 graus que tem feito na cidade. Parece que hoje já arrumaram. É o mínimo, né doutora? Ninguém merece!!!
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