RAUL CUNHA, UM CORAÇÃO MARILIENSE DESDE 1938
Problemas passageiros com a saúde impedem hoje uma das predileções de Raul Mário Cunha: encontrar-se com os amigos e jogar conversa fora, principalmente sobre futebol. Também ainda abatido com o falecimento da esposa Volínia há três anos, esse cidadão, bastante estimado na cidade, vai completar 86 anos de idade em julho e sete décadas vivenciando a história de Marília. Para a reportagem do Diário ele contou sobre a chegada da família em 1938, seu tempo de lateral-esquerdo do time do São Bento e também deu uns palpites na política local.
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Diário de Marília – Muitas saudades da esposa, não é?
Raul Mário Cunha – E como! Foram muitos anos de convivência, desde o começo do namoro, em 1948, passando pelo casamento em 20 de outubro de 1951, bodas de ouro, até o seu falecimento em 2005. Só aqui na minha residência [rua Presidente Vargas, 542] foram mais de 40 anos. Uma vida.
Diário – O senhor conheceu a Volínia Gaviolli no comércio de Marília?
Raul Cunha – Sim, ela era de uma família humilde que morava na Vila São Miguel. Seu pai era carroceiro. Volínia era contadora do Oswaldo Guedini, dono da joalheria que depois foi adquirida pelo Romeu Forim. Namoramos dois anos e pouco e até nos casarmos.
Diário – Em qual igreja?
Raul Cunha - Foi na igreja de Santo Antônio, numa cerimônia abençoada pelo padre Feruche. O padrinho dela foi o José Lozano e o meu o Américo Ravanelli, proprietário da alfaiataria Carioca.
Diário – E os filhos?
Raul Cunha – O Hivalther é o primogênito, engenheiro agrônomo. É conhecido pelo apelido de Tilim. Depois veio o Mário Sergio, engenheiro civil. E a caçula Vânia, que é administradora de empresas. Tenho três netos: Daniel, Amanda e Tavânia.
Diário – O pai do senhor também veio para Marília em busca de uma vida melhor?
Raul Cunha – Certamente. Ele, João Batista Cunha, nasceu em Santa Rita do Passa Quatro, e minha mãe, Maria de Lourdes Galvão Cunha, em Jaboticabal. Eu nasci no dia 1º de julho de 1923, na cidade de Guariba, município próximo a Ribeirão Preto. Tenho cinco irmãos. Apenas o João Carlos reside em Araçatuba. Os outros – Araguay, Eunice, Maria José e Sônia – moram aqui.
Diário – E quando a família chegou a Marília?
Raul Cunha – Primeiramente residimos muitos anos na cidade paranaense de Cambará, onde papai tinha uma loja de ferragens e um armazém na zona rural que se chamava Taquaral. Seu amigo, o Miguel Granito Neto, já havia deixado Cambará e tinha negócios em Marília desde 1928. Era motorista de praça e dono do posto Texaco, onde até hoje é o edifício Marília. Foi ele que convenceu papai a vender tudo e buscar uma vida nova aqui. E assim foi feito. Chegamos em julho de 1938, quando eu completei 15 anos. Nossa primeira residência foi na rua Paraná, 44, numa das casas alugadas pelo doutor Peregrini.
Diário – E o que seu pai fez no início?
Raul Cunha – Munido de umas boas economias, ele adquiriu uma linha de ônibus, aquelas jardineiras. Com o tempo ele exerceu outras atividades, como comerciante, empresário, e até foi dono de uma área de terra na região de Amadeu Amaral. Aliás, foi ele que construiu o primeiro balneário de Marília, no local onde futuramente ficou conhecido como “Ricardão”. Papai faleceu em 1974. Mamãe sempre foi dona de casa e nos deixou no ano seguinte.
Diário – E o senhor, com 15 anos e apenas o primário, foi fazer o quê?
Raul Cunha – Meu primeiro emprego foi na farmácia Drogasil, que ficava na Sampaio Vidal esquina com a Armando Sales. Átila Ribeiro Ponciano era o gerente, e Nestor Aguiar, o seu imediato. Tinha como colegas de trabalho o Melquíades Flores, Hermes Viçoto, Guido Rossini, Orlando Galati, Ismar Magalhães e os irmãos Álvaro e Carlos Ferreira. Trabalhei depois na Casa Verde de Ferragens (avenida Brasil, entre a 9 de Julho e a Sergipe), na joalheria do Agostinho Forim e no Comercial Maripan. Fui dono do bar e sorveteria Central, onde foi a Casa Almeida, futuro Bradesco, e também da relojoaria Esmeralda, ao lado do Zico Alfaiate, no centro. Em 1945 papai montou uma fábrica de doces na rua Duque de Caxias, 77. De 1950 a 1970 fui seu sócio, quando então a fábrica foi negociada. Viajava por todo o Paraná realizando as vendas.
Diário – E depois?
Raul Cunha – Aí fiquei um tempo parado. Certo dia fui procurado pelo meu amigo Lázaro Ramos Novaes que me convidou para trabalhar na sua empresa, a usina que fabricava o óleo Senhourinha, na avenida República. Era encarregado dos artigos de embalagens e gerenciava os viajantes e as cargas. Aposentei-me em 1982. Mas não parei por aí. Ainda fui dono da farmácia São Paulo (avenida República) que era gerenciada pelo Valdemir Negri e também de um bar (final dos anos 80) na região do aeroporto (zona leste).
Diário – Hoje a mocidade quando curte a vida noturna fala muito em balada. Naquela época, sobretudo nos anos 40, quem eram seus amigos de balada?
Raul Cunha – O Heraldo de Almeida, João Viana, Homero Viana, Carlos Germano e o Nélio Sterline.
Diário – E os pontos preferidos?
Raul Cunha – Além do footing na Sampaio Vidal, havia a boate Eldorado, a sorveteria Central, o bar Rex, o Marília Tênis Clube, o Clube dos Alfaiates, o bar Avenida (ficava aberto dia e noite), o Piracicabana, a Brasserie e o Bilhar Avenida, do Teodoro Marques Pinto.
Diário – A boate Eldorado era muito famosa, não é?
Raul Cunha – Quem a montou, na avenida Sampaio Vidal, onde depois veio a ser o banco Mercantil, foi o Francisco Ardito, manda-chuva do time do São Bento. Por lá se apresentaram os bambas da música, como as orquestras Simonetti e Xavier Cugat e cantores de renome nacional como o Orlando Silva, Carlos Galhardo e Lourdinha Bittencourt. Era, como se diz hoje, o ponto mais badalado.
Diário – E a zona do meretrício?
Raul Cunha – Aquilo era um “paraíso” para os marmanjos. Pegava a rua Bonfim entre a 9 de Julho até a José de Anchieta e um pedaço da rua dom Pedro. Era também um areião só. Mas as opções eram muitas: Cabaré Guarani, Casa da Cidona, Casa da Minerva e o Bico do Pavão, onde ao lado tinha o concorrido bar do João Ribeiro.
Diário – E o pessoal só querendo festa?
Raul Cunha – A zona era movimentada diariamente, com dinheiro correndo à vontade. A cidade vivia o auge das culturas do café e do algodão e tinha fazendeiro montado na grana pra todo lado. Acho que a melhor casa de todas foi o Cabaré Guarani. Vamos falar assim... um luxo. Havia espetáculos de dança e uma mulher mais bonita que a outra. Muitas vinham de fora, de São Paulo e até do Rio de Janeiro. O pessoal se divertia no centro e depois descia pra farra.
Diário – Agora um assunto que o senhor gosta muito, o futebol. Quando começou a jogar bola?
Raul Cunha – Comecei no São Bento, por volta de 1938. No ano seguinte, no dia 10 de outubro, recebemos o timão do Fluminense carioca. Um jogo inesquecível: 3 a 3. O São Bento tinha praticamente duas equipes. O time “A”, onde jogavam craques como o Bugre, Barroca, Zico, Armando, Mimi, Titi, Valter Rosa, Delovic, Zé Ceroni e Morandini. E tinha também o “B”, que a turma chamava de “meia-boca”, onde eu me incluía como lateral-esquerdo. Jogavam o Arsênio, Peola, Brandãozinho, Baianinho, Raul, Rubens Venturini, entre outros. Os cinco irmãos da família Ceroni atuavam no São Bento: Zé, Sidney, Edgard, Renato e Luizinho. Isso foi até 1942, quando o São Bento pediu licença na Federação e então veio o Comercial, que permaneceu alguns anos. Eu encerrei a carreira como jogador em 1948. Depois me tornei dirigente esportivo.
Diário – A vida do jogador era muito corrida?
Raul Cunha – Sim, porque não existia o profissionalismo. O cara jogava, mas sempre tinha uma ocupação. Havia dois treinos durante a semana. Tivemos muitas alegrias, mas também muitas decepções, como a desclassificação pelo Noroeste em 1943. Lá perdemos por 3 a 2 e aqui empatamos em dois gols.
Diário – E naquela partida contra o Noroeste em Marília, que houve uma briga feia e até carros foram incendiados?
Raul Cunha – Isso já foi em 1954, quando eu era diretor de Esportes do time. O juiz meteu a mão, prejudicou o São Bento e aí o pau comeu. O juiz levou uma surra tão grande que foi parar no hospital. A torcida enfrentou a polícia e incendiou uns pés-de-bode.
Diário – Como era tocar o futebol naquele tempo?
Raul Cunha – Era muito complicado, difícil mesmo. Hoje você vende o jogador e ganha um bom dinheiro. Naquela época não, surgiam jovens talentos, vinham os times grandes, levavam os atletas e não davam nem satisfação. Isso aconteceu com vários craques como os irmãos Baianinho e Baianão, o Paíco, o Oliveira e o Delovic (Palmeiras), o goleiro Robertinho, que foi para o Juventus e depois para o Fluminense, o Bugre, que foi parar no Corinthians, e muitos outros. O contrário só aconteceu uma vez, quando o Thomaz Alcalde trouxe o Zizinho, o Bob e o Leônidas, que não era o Diamante Negro.
Diário – Mas era difícil assim segurar os craques da cidade?
Raul Cunha – Não tinha jeito, dirigente naquela época tinha que pôr dinheiro do bolso para saldar os compromissos com os jogadores e olha lá, quando conseguia. Eu mesmo cansei de assinar títulos para pagar o pessoal. O coitado do Antônio Lourenço perdeu uma farmácia e a sua residência na rua Feijó, tudo por amor ao futebol. O Francisco Ardito, o Nélio Sterline e o Eduardo Rego poderiam lhe dizer. Um sufoco! Hoje o futebol brasileiro está repleto de pernas-de-pau. Os que se destacam já são mandados para a Europa com menos de 15 anos. Todo mundo ganha dinheiro. E muito. Ninguém segura essa ganância dos empresários. Já que a tal da Lei Pelé abriu brechas, não há muito que se fazer.
Diário – O senhor sempre acompanhou o Mac?
Raul Cunha – Sim, todos seus altos e baixos. Teve bons dirigentes, como o jovem Cai-Cai, recentemente, mas também teve no comando pessoas irresponsáveis e inconsequentes que fizeram do time trampolim político e meio de vida. O torcedor maqueano não merece isso.
Diário – E atualmente?
Raul Cunha – Infelizmente veio o rebaixamento para a série “C” em 2008 e agora vem aí um Paulistão muito difícil. É brigar para não cair de novo. Acredito que a falha do Mac está nas contratações. O time precisa de qualidade e não de quantidade.
Diário – Falando em política, nesses seus 70 anos de Marília, para qual prefeito o senhor tiraria o chapéu?
Raul Cunha – Olha, muitos (não todos) merecem o reconhecimento pelo trabalho, esforço e honestidade. Mas, em minha opinião, o mais dinâmico foi o Miguel Argolo Ferrão (UDN). Esse cidadão fez muito pela cidade, inclusive a Casa de Saúde São Luiz, mais tarde o Hospital Marília. Aquela baixada da rua 9 de Julho, era um caos, um brejo, e ele conseguiu que se transformasse num bairro residencial. Acho que ele só não fez mais obras em virtude de divergência política com o então governador Ademar de Barros (PSP). Aliás, foi Argolo quem previu que Marília iria ter problemas com o abastecimento de água. Ele alertava que num futuro próximo seria necessária a canalização da água do Rio do Peixe, que tinha cinco metros de profundidade.
Diário – Quer citar mais alguns nomes?
Raul Cunha – Não se pode esquecer do Adorcínio de Oliveira Lyrio e seu filho Theobaldo, do Tatá e do Armando Biava, que construiu a primeira adutora, e também do Pedro Sola. Também não se pode esquecer da Câmara Municipal daquela época, em que vereador não era remunerado, não tinha nenhum funcionário à disposição, mas que, pelo amor à cidade, trabalhava até de madrugada em benefício do povo.
Diário – E caso o senhor fosse hoje o prefeito, o que faria?
Raul Cunha – A maior gravidade mesmo é a questão da água. Espera-se que o novo diretor do Daem resolva em definitivo esse transtorno. Mas há muitas coisas na cidade que precisam ser solucionadas. É inadmissível essas ruas esburacadas, essas guias rebaixadas que pioram o estacionamento, a poda incorreta das árvores, as calçadas abandonadas que prejudicam os pedestres, enfim, pequenas medidas que se colocadas em prática vão tornar uma Marília mais bonita e facilitar a vida do povo.
Diário – Quer deixar alguma mensagem para a população?
Raul Cunha – Que amo demais essa cidade e seu povo hospitaleiro, pois foi aqui que constituí família e pude colaborar um pouco para o desenvolvimento de Marília.
NOTA DO JORNALISTA: Impossível, apenas nesta página, relatar toda a vida de Raul Cunha. Sua memória é infalível e, a cada pergunta, as respostas vão se multiplicando e surgindo então novos nomes e outras histórias.
ENTREVISTA PUBLICADA NO DIA 9 DE JANEIRO DE 2009 NO JORNAL DIÁRIO DE MARÍLIA – JORNALISTA VADINHO DORETO
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