A VIDA DE ZORAIDE E SEBASTIÃO BARRETO E UMA BANDA QUE NÃO PAROU DE TOCAR
Ela nasceu em setembro de 1926 na cidade de Bocaina (SP), ano em que perdeu o pai. Única mulher de cinco irmãos, chegou a Marília com os familiares no dia 2 de outubro de 1931. Foi morar na avenida Pedro de Toledo onde funcionou por muito tempo a primeira loja maçônica da cidade. Teve o privilégio e a decepção de engrossar a torcida de 200 mil pessoas naquele fatídico 16 de julho de 1950, quando o Brasil, em pleno Maracanã, perdeu a Copa do Mundo para o Uruguai por 2 a 1. Mais uma data inesquecível: 14 de fevereiro de 1942. Com então 15 anos, numa festa, conheceu o grande amor da sua vida, o tintureiro e músico Sebastião Barreto, que durante 40 anos regeu uma das bandas mais tradicionais e populares de Marília. A reportagem do Diário conversou esta semana com a simpática Zoraide Manechini Barreto, ex-inspetora de alunos da escola “Olga Simonaio”, hoje com 82 anos, que abordou sua trajetória de vida, sobretudo a dedicação e paixão do marido pelos acordes musicais.
*****
Diário de Marília – Afinal, qual o verdadeiro nome da senhora? Ordália, Oraide ou Zoraide?
Zoraide Manechini Barreto – Quando eu nasci mamãe pediu a um tio que fosse fazer o meu registro. E ela recomendou bem: coloque o nome na menina de Oraide. Só que no cartório, esse tio não se lembrou e me registrou como Ordália [risos]. Mamãe nunca conseguiu me chamar de Ordália, e sim de Oraide. Com o tempo os parentes e amigos acabaram só me chamando de Zoraide e é assim que eu sempre gostei.
Diário – Então está bem, dona Zoraide, conte um pouco sobre a origem da sua família.
Zoraide – Eu sou filha dos sitiantes Argil Manechini e Maria Martine. Morávamos num sitinho de papai na cidade de São João da Bocaina, região de Jaú, que mais tarde veio a se chamar apenas Bocaina. Meus irmãos Olindo, Marino, Nelo e Ozório já faleceram. Cinco anos após a morte de papai, nós viemos para Marília, em 1931, por influência de um tio, o Paulo Manechini, que tinha uma fazenda em Oriente.
Diário – Quando a senhora chegou a Marília, como foi essa história meio “assombrosa” de residir onde funcionava uma sede maçônica?
Zoraide – [Gargalhada.] São coisas da época, já que naquele tempo a maçonaria era uma instituição muito “fechada”. Era uma casa de tábuas que mamãe, com algumas economias, comprou-a do senhor Carlos de Assis. A casa era alta, grande e tinha uma sala toda pintada de preto, a única que tinha forro. No começo aquela sala escura chegava a assustar a gente, pelas histórias que contavam sobre a maçonaria. Eu até pergunta pro senhor Carlos: será que vai aparecer algum bode aqui? [risos]. Resumindo, tudo conversa mole. Mamãe logo pintou todos os cômodos com cores claras e resido no mesmo local há 78 anos, sem nenhum problema. É claro que com o tempo a casa foi totalmente reformada. Quando aqui cheguei esta rua se chamava São Paulo, depois que passou a ser Pedro de Toledo.
Diário – Onde a senhora estudou?
Zoraide – Fiz o primário no Colégio Sagrado Coração de Jesus, além da admissão e o ginásio. [Rindo.] Tem aí até um fato engraçado. Ao lado do colégio havia um grande acampamento de ciganos. Para que eu e meus irmãos voltássemos logo pra casa depois da aula, mamãe vivia colocando medo na gente: se pararem em algum lugar por aí os ciganos pegam vocês. Morríamos de medo e sempre obedecíamos.
Diário – Do que mais a senhora se lembra do período escolar?
Zoraide - Dos amigos Paulino, Ernestina e Laurindo, todos da família Merlo; Jaci Grande, Durvalina e Mário Cardoso; do Luiz e do Haroldo [ambos filhos do doutor Edmundo da Silva Freire] e do José Milaré, que veio a ser padre. Recordo-me também do Raje e da Meibe Thomé; de toda família do doutor Lourival Luiz Viana e das professoras do Sagrado, as irmãs Raquel, Anacleta, Noêmia e Bergman.
Diário – Como a garotada se divertia?
Zoraide – No meu caso, só em frente de casa. E aquelas brincadeiras tradicionais, como pique, roda, balança-caixão e garrafão.
Diário – Namorar na época era complicado?
Zoraide – Na minha adolescência havia apenas o olhar, o que se chamava de flerte. Num namorinho, nem se podia pegar na mão. Sair, nem no sonho [risos]. Mas se alguma das moças começava uma relação mais séria, havia um dia marcado para o namoro. Era na sala da casa, na frente dos familiares e jamais se ficava a sós.
Diário – Como surgiu na sua vida o Sebastião Barreto?
Zoraide – [Emocionada.] Ah, que momento tão sublime. Num matrimônio da família Merlo, a gente fez uma roda para os noivos dançarem e ele acabou pegando na minha mão. Eu tinha 15 anos. Moço bonito, cheio de estilo [pensativa] ... fiquei apaixonada. Depois descobri que ele morava perto de casa. E aquilo que eu disse anteriormente, o flerte, acontecia sempre. Ele gostava muito de música e já tocava trombone na banda do maestro Jorge Galati. Mas, confesso, achei que não teria chance. O Sebastião era uma pessoa linda e eu sabia que as moças não lhe davam sossego [risos].
Diário – Foi fácil para a senhora vencer essa “disputa” com várias concorrentes?
Zoraide – [Gargalhada.] Fácil não, mas levei a melhor. Ficamos noivos em 14 de setembro de 1943 e, no ano seguinte, no dia 23 de maio, aconteceu o enlace na Igreja São Bento, sob as bênçãos do querido padre Luiz Bicudo. Após a cerimônia a banda saiu tocando pelas principais ruas do centro até um salão na avenida República, onde aconteceu uma grande festa.
Diário – E onde vocês foram morar?
Zoraide – Fomos morar em casa com mamãe, pois todos meus irmãos já haviam se casado e foram residir em outros lugares.
Diário – E os filhos?
Zoraide – O primeiro, o Wanderlei, chegou a jogar no MAC e tinha o apelido de Magriça. Hoje ele é diretor do “Positivo”, uma renomada faculdade da capital paranaense. O Waldo é empresário em Ribeirão Preto. A Maria Aparecida se mudou para Brasília em 1975 onde reside até hoje, trabalhando como pedagoga na secretaria da Educação. A Maria Cristina é médica e mora em São José do Rio Preto. E a caçula é minha querida advogada Maria Inês. Tenho 8 netos (Luciane, Rodrigo, Patrícia, Bruno, Fábio, Rômulo, Rafael e Fabinho) e 5 bisnetas (Agatha, Carolina, Brenda, Maria Eduarda e Liz). Ah, em julho chega mais uma bisneta, pra nossa felicidade.
Diário – A senhora esteve na trágica final da Copa do Mundo de 1950?
Zoraide – Antes não tivesse ido. Eu já estava casada há seis anos e fiquei encantada quando cheguei ao Maracanã, um templo, um gigante recém-inaugurado. Eu o Sebastião nos sentamos na parte central do campo, um local privilegiado. Tudo estava preparado para o país comemorar seu primeiro título mundial com o apoio de 200 mil torcedores. Mas, no final do segundo tempo, quando o empate nos dava o título, o Uruguai acabou com a festa. Foi uma choradeira geral, um velório, uma sensação horrível que nunca mais esqueci.
Diário – Bem, vamos falar um pouco sobre a chegada do seu saudoso marido a Marília. Como foi?
Zoraide – O Sebastião era filho de José Antônio Barreto e Francisca Cândida Ribeiro.
Ele nasceu em São Sebastião da Grama (SP), em 1921. Todos seus sete irmãos também já faleceram: Antônia, Cota, Aparecida, Lazara, José Antônio, Waldo e Antônio do Carmo. O Waldo chegou a ser diretor da Folha de São Paulo, com a família Frias e o Antônio integrou a famosa dupla sertaneja Barreto e Barroso, que fez sucesso por muitos anos em todo o Brasil. A música estava no sangue da família. Na sua cidade natal, meu marido aprendeu a tocar pistom. Chegou a Marília quando tinha 20 anos, em 1941. Primeiramente ele trabalhou no Hotel São Bento, para depois adquirir a tinturaria Aurora, em frente ao jardim São Bento. Nunca largou a tinturaria, sua fonte de renda.
Diário – Como ele ingressou na banda do maestro Galati?
Zoraide – Certa vez ele foi ver uma retreta [concerto de uma banda de música em praça pública] e ficou apaixonado. Gostou tanto que foi parabenizar o Galati e disse que também era músico. Não demorou para chegar o convite. Aí ele não parou mais. Começou tocando trombone. Lembro-me que eles ensaiavam três vezes na semana, na baixada da rua 15 de Novembro, em ruas todas de terra. Em pouco tempo ele já era contramestre [o imediato ao mestre ou ao seu substituto]. O Sebastião sabia tudo de música e ela era a sua alma. E eu nunca deixei de apoiá-lo nessa sua grande paixão.
Diário – Quando surgiu finalmente a famosa Banda do Barreto?
Zoraide – Com a morte do maestro Galati, se não me engano, em 1960, o Sebastião integrou um outro grupo formado pelo Atílio Gomes de Mello. Mas foi em 1965, com o auxílio do então prefeito Armando Biava, que nasceu oficialmente a Banda (Municipal) do Barreto composta por 30 músicos. E até hoje ela está em atividade levando um pouco de alegria para a população.
Diário – Como era o repertório da banda?
Zoraide – Bastante diversificado, com destaque para os dobrados [músicas de marcha militar]. As retretas com sambas, marchas, boleros, entre outros ritmos, aconteciam todos os domingos na Praça Saturnino de Brito, assim como os tradicionais concertos no Colégio Sagrado Coração de Jesus. Carnaval, foram mais de 40. Jogos do Mac, então, nem se fala. A banda sempre tocou gratuitamente e até hoje se apresenta nos hospitais, asilos e outras entidades assistenciais.
Diário – Até quando o Sebastião tocou trombone?
Zoraide – Até 1981, pois foi acometido de um problema no coração. [Olhar vago.] Mas continuou a coordenar as atividades do grupo e a regê-lo até a sua morte, em 2 de março de 2004, aos 83 anos. [Emocionada.] O importante é frisar que ele praticamente não teve nenhum auxílio na trajetória da banda. Comprava os instrumentos, cada membro do grupo ajudava como podia, pois todos eram muito amigos, eram como se fossem irmãos. Sempre tocaram por prazer e nunca fizeram da música profissão.
Diário – Ele também teve uma relação muito afetiva com a chácara O Circo, não é?
Zoraide – Pode-se dizer que ele foi um dos fundadores da chácara, tanto é que recebeu do amigo Valdyr Cezar a importante homenagem de patrono do ano de 1989. Em todos os eventos do Circo lá estava o Sebastião com os músicos garantindo a alegria do público. Nos carnavais de rua, no chamado Desfile da Bagunça, a banda sempre marcou presença. E isso acontece até hoje. Não tenho palavras para agradecer o que o Valdyr Cezar fez pelo meu marido.
Diário – É verdade que a banda fez muito sucesso nas primeiras feiras da fraternidade de Marília?
Zoraide – Isso foi nos anos 70, no estádio Bento de Abreu Sampaio Vidal. Em volta do campo aquele monte de barracas vendendo de tudo. No centro do gramado um palco, onde se apresentavam cantores de renome. A chácara do Valdyr participava com uma tenda imitando um circo, e era um dos locais mais requisitados pelo público. Às vezes o pessoal preferia ficar nesse “circo mambembe” do que prestigiar os shows principais [risos].
Diário – Por quê?
Zoraide – Bem, a banda segurava o ritmo até o fim, mas nos intervalos acontecia outro tipo de espetáculo. O apresentador [“Respeitável público...”] era o Waldyr Silveira Mello. De repente entrava o José Cláudio Bravos dando um show na sanfona, junto com o Orozimbo Giraldi. Depois surgia um japonês cantando tango. Outra atração era o Lázaro Ramos Novaes contando piada. Você quer diversão melhor? Ninguém queria sair de lá por nada [muitas gargalhadas].
Diário – O que o Sebastião gostava de fazer nas horas vagas?
Zoraide – Ele tinha seu aparelhinho de som e uma verdadeira discoteca em casa. Seu lazer era ficar ouvindo as músicas antigas, de bandas e sertanejas, e depois executá-las. E sempre acompanhado daquela comidinha caseira [arroz, feijão, bife e batata frita], às vezes de uma cervejinha ou de um bom vinho tinto. Agora, a maior alegria da vida dele era reunir toda a família naquele tradicional almoço de domingo. Não era uma tarefa fácil, pois alguns filhos sempre residiram fora. Mas, com qualquer reunião entre familiares, ele se sentia realizado.
Diário – Quem foram seus melhores amigos?
Zoraide – Acredito que nesta página não iria caber. Posso citar o compadre Vicente, os irmãos Osvaldo e Agenor Stevanato, João Calandrim, que cantou até na sua despedida, Daniel, Messias Machado, Argemiro Cândido de Melo, Mikami, Francisco Mendes da Silveira e tantos outros que peço desculpas por não lembrar o nome.
Diário – Quer deixar alguma mensagem?
Zoraide – [Pensativa.] Que tudo que queria na vida, eu consegui. Ou seja, um marido maravilhoso, uma família fantástica, que sempre pendeu para o lado do bem. Só tenho que agradecer a esse povo hospitaleiro e que amo de verdade essa cidade chamada Marília.
ENTREVISTA PUBLICADA EM MARÇO DE 2009 NO JORNAL DIÁRIO DE MARÍLIA PELO JORNALISTA VADINHO DORETO
NOTA DO JORNALISTA – Dona Zoraide fez questão de ressaltar na entrevista que gostaria de “tirar o chapéu” para uma pessoa em Marília. Trata-se do cardiologista Sidônio Quaresma, que além de médico da família, sempre foi mais que um amigo. Em 8 de maio de 2006, através do requerimento número 783, o vereador Mário Coraíni solicitou ao Executivo denominar “Sebastião Barreto” uma importante obra da cidade. Até agora nada. Zoraide espera estar viva para presenciar essa justa homenagem. Garante que nesse dia vai haver mais uma grande apresentação da banda que faz parte da história de uma cidade.
コメント