BENTO NONATO: CARPINTEIRO, MÚSICO E UMA LINDA HISTÓRIA DE AMOR
Dando sequência à trajetória de pessoas que de alguma forma contribuíram para o crescimento de Marília, a coluna abre 2009 entrevistando Bento Alberto Nonato, 76 anos, pioneiro no ramo da carpintaria, e que até hoje divide as alegrias e tristezas com o grande amor da sua vida: Maria Rosa da Silva Nonato. O casal é mais um testemunho de que nada suplanta o verdadeiro amor. Eles transpuseram preconceitos e geraram uma família maravilhosa, com 13 filhos, de onde vieram 39 netos e 12 bisnetos (até agora). Bento suou a camisa na construção de inúmeras obras, como o Hospital Espírita, “Monsenhor Bicudo” e a Casa da Lavoura. Ele também tem na música uma de suas grandes paixões. Integrou vários conjuntos na mocidade e nos anos 60 também passou a dedilhar sua guitarra e violão em eventos cristãos. Há 45 anos seus acordes ganham elogios nas missas de final de semana da Igreja de Santa Isabel. Avesso à política, deixou apenas um conselho para os homens públicos: planejem bem a construção de um bairro para que no futuro os moradores não sejam penalizados com a falta de água e de saneamento básico.
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Diário de Marília – Onde seus pais nasceram?
Bento Alberto Nonato – Meu pai, Alberto Nonato, nasceu na província italiana de Rovigo e chegou ao Brasil no começo do século passado indo residir na região de Jaboticabal e São Carlos, exercendo a profissão de carpinteiro. Lá ele conheceu minha mãe, Ernestina Di Cola. Tiveram nove filhos. Ercília, Josefina, Guilherme, Olívia, Isaura e Elza já faleceram. O Mário, o Luiz e eu moramos em Marília.
Diário – Os ascendentes da maioria das pessoas entrevistadas por esta coluna disseram que vieram residir em Marília porque a região prosperava bastante, com muito campo de trabalho. Com o pai do senhor foi a mesma coisa?
Bento – Exatamente. A conversa era que por aqui se varria dinheiro com rastelo. Papai chegou por volta de 1929, quando Marília passou a ser uma comarca. Eu nasci aqui no dia 13 de maio de 1932. Nossa primeira residência foi na avenida Rio Branco, entre as ruas 24 de dezembro e Santo Antônio. Depois moramos onde hoje é o supermercado Pão de Açúcar. Ali existia uma máquina de café. E também moramos por muito tempo na Vila São Miguel.
Diário – Mas o dinheiro não estava caindo do céu, como o pessoal comentava, não é?
Bento – Pelo contrário. Papai trabalhava muito e eu e meus irmãos tivemos que pegar cedo no batente para ajudar no sustento da família.
Diário – E os estudos?
Bento – Não consegui completar o quarto ano primário. Estudei apenas no 3º grupo, que era dirigido pelo professor Reginato. Ou trabalhava, ou estudava. Não dava pra fazer as duas coisas. Mas quando achava tempo para brincar, estava sempre reunido com os amigos Theobaldo (Oliveira Lyrio), Osaki (Nakamura), Zé da Isolina, Orlando, Noel, Pedro, Lindolfo, Miguel, Dionísio e Euclides Waitman e os também irmãos Sindino, Noraldino e Percendino.
Diário – E com quantos anos o senhor recebeu seu primeiro dinheirinho?
Bento – Com apenas 8 anos, como ajudante da fábrica de doces São José, que ficava na Vila São Miguel.
Diário – E depois?
Bento – Ah, eu fiz de tudo um pouco! Dos 10 aos 12 anos fui empregado de um açougue e, até os 18, fui pintor. Então aprendi o ofício de carpinteiro e trabalhei em vários locais, como a Anderson Clayton, Antarctica, as construtoras Júlio Capobianco e Fenan, entre outros.
Diário – Então muitas obras importantes tiveram um empurrãozinho do senhor?
Bento – Sim, porque além de carpinteiro, eu também fazia as vezes de pedreiro, pintor, marceneiro, eletricista e encanador. Colaborei na reforma do Abreuzão, construção da escola Monsenhor Bicudo, Casa da Lavoura, Instituto Brasileiro do Café e muitos outros prédios. Alguns já foram demolidos, outros ainda permanecem intactos e preservam a história da cidade.
Diário – É verdade que o senhor também ajudou na construção daquele famoso bar Karango, onde hoje é o ginásio de esportes do Marília Tênis Clube?
Bento – Ali quase me dei mal. Os donos estavam com pressa para a inauguração e faltava uma parte do teto. Lembro-me que naquela tarde o tempo estava chuvoso e eu no telhado dando os últimos retoques. Escorreguei e caí de costas em cima de uma mesa. Foi apenas um susto, sem maiores conseqüências.
Diário – Como surgiu a paixão pela música?
Bento – Com 12 anos, quando aprendi a gostar de cavaquinho, meu primeiro instrumento. Depois de alguns anos a gente se reunia e tocava nos bares, só pelo prazer. Meu irmão Guilherme arranhava o violão e o amigo Toninho no pandeiro. Era uma festa.
Diário – E o primeiro conjunto?
Bento – Ele nasceu quando eu já havia aprendido a tocar violão. Tinha 16 anos (1948) e a gente deu o nome de “Fita Azul”. O time era bom: Vicente, tenor, e que também tocava violão como eu, Agenor (pandeiro), Dito (percussão) e o Baiano, vocalista. Não me recordo do outro integrante.
Diário – Aí veio o sucesso com qual tipo de música?
Bento – A gente tocava e cantava vários estilos musicais, porém, o que mais predominou foi a seresta. Naquela época a atração na cidade eram os programas de auditório promovidos pelas rádios Clube e Dirceu. Casa cheia nos finais de semana. Na Clube quem comandava o show era o Otávio Lignelli e na Dirceu o Atílio Cizotto. A gente também se apresentava em Vera Cruz, na rádio Verinha.
Diário – Por que o “Fita Azul” acabou?
Bento – Assim como em outros grupos que participei, sempre acontecia de algum companheiro ter que parar devido a compromissos particulares. Ficava difícil conciliar os ensaios. Consequentemente você vai mudando os músicos e dando outro nome, como foi com o “Ases do Brasil”.
Diário – Então veio gente nova?
Bento – Sim, o José Baraldi, violão, tenor e tantan [instrumento musical cilíndrico menor que o surdo] e o Toninho retornou com o pandeiro. Integrei também a primeira formação da banda “Feis Feres e seu Conjunto”, que veio a suceder o “Feis Feres e sua Orquestra”.
Diário – E quem fez parte dessa banda?
Bento – O Feis, é claro, sempre impecável no saxofone, João (pistão), João Pereira (pandeiro), Agnaldo (baterista), Wilson Silva (vocal) e eu na guitarra. O conjunto se apresentava em várias cidades brasileiras. Em Marília, como sua coluna já divulgou, os bailes no Clube dos Alfaiates foram inesquecíveis. O músico era muito respeitado naquela época. Todo mundo tinha que portar a carteira da categoria.
Diário – Ainda teve mais grupos?
Bento – Sim, sempre acompanhei o grupo Raízes (anos 70), um samba de primeira linha. Ainda consegui formar um conjunto de forró, com o José Nardelli no acordeão e o Expedito na bateria.
Diário – Quem o levou para tocar em igrejas e eventos comunitários?
Bento – Foi em 1964, através de convite da família Mazini. Mas também continuei com os antigos estilos musicais, sobretudo a seresta e o samba. Mas no caso, principalmente da Igreja de Santa Isabel, fui muito bem recebido pelo então padre Ivo e logo integrei um conjunto e o coral. E lá estou há 45 anos, nas missas de sábado e domingo. É o meu segundo lar. Participei de festivais de música sacra, eventos de muitas igrejas e de quase todas as festas no Patronato, que deve uma estátua ao “Mecenas da Solidariedade”, Angelino Doreto Campanari. Opa, não posso me esquecer de citar que eu e minha esposa fazemos parte há muitos anos da equipe de casais de “Nossa Senhora Rainha da Paz” e também do grupo “Amigos da Seresta”.
Diário – A música lhe deu dinheiro?
Bento – Em hipótese alguma, continuo morando aqui na minha modesta casa, há mais de 40 anos, na rua Marquês de São Vicente, 611 (bairro Cascata). A minha maior gratificação sempre foi servir ao próximo, com Deus no coração. Recompensa maior é ser elogiado pelo público ao final das apresentações.
Diário – Pode-se dizer que o senhor e a esposa Maria Rosa estão juntos há 68 anos?
Bento – É verdade, levando-se em conta que nós nos conhecemos quando eu tinha 8 anos e ela 6.
Diário – Nasceram um para o outro?
Bento – Não tenho dúvida. Encontrei minha alma gêmea ainda criança.
Diário – E como foi o primeiro encontro?
Bento – Certa vez meu pai foi fazer um serviço na fazenda Três Lagoas em Oscar Bressane, onde morava a família da Maria Rosa, e me levou como companhia. Lá eu a conheci. Brincamos muito, durante três dias. Foi bastante divertido. Fui embora muito feliz com as lembranças daquela garotinha, mas também muito triste com a despedida. Se seria apenas coisa de criança, não sei responder. Mas a impressão que ficou foi algo diferente da convivência com as outras meninas da cidade.
Diário – E para a sua felicidade esse amor à primeira vista não terminou como aquela marchinha carnavalesca do Adoniram Barbosa, “Vila Esperança”, onde ele canta “...Maria Rosa, meu primeiro amor...”, né?
Bento – Rapaz, nem tinha reparado, mas revirando o baú acho que também estávamos numa época de carnaval...
Diário – O Adoniram endeusa: “Como fui feliz, naquele fevereiro/Pois tudo para mim era primeiro/Primeira rosa, primeira esperança/Primeiro carnaval, primeiro amor criança...”. E desfecha com um lamento: “...O carnaval passou, levou a minha Rosa/Levou minha esperança, levou o amor criança/Levou minha Maria, levou minha alegria”.
Bento – É isso mesmo, felizmente o destino foi generoso comigo, porque passado um certo tempo a família dela veio residir em Marília. E acredite, bem ao lado da minha casa, na rua 24 de Dezembro, na Vila São Miguel. É a vontade de Deus, você não acha?
Diário - Aí ficou mais fácil?
Bento – Evidente que a amizade foi se intensificando e depois veio aquele namorinho às escondidas, até chegar na adolescência. Mas sempre às escondidas, menos da mãe dela, que já sabia do nosso amor.
Diário – Mas vocês não saíam?
Bento – Os namoros naquela época eram muito controlados pelos pais. Só se pegava na mão, cinema só acompanhado de algum irmão ou parente da menina, e um beijo significava um troféu. Mas eu e a Maria tivemos que enfrentar um outro tipo de problema, para conquistarmos a tal “alforria”.
Diário – E o que foi?
Bento – Acontece que havia um preconceito por parte das duas famílias. Meus pais a achavam meio “torradinha” e não permitiam o relacionamento. O pai dela descendia de uma comunidade indígena da cidade de Guanambi, na Bahia, e falava que ela só se casaria com alguém da tribo. Impossível descrever aqui o sofrimento que passamos. Mas nunca deixamos de acreditar no amor.
Diário – E como tudo foi resolvido?
Bento – Quando as famílias descobriram a seriedade do namoro (meus pais e o “cacique”), só lhes deixamos uma alternativa: ou vocês cedem ou a gente foge. Felizmente todos cederam e acabamos nos casando no dia 6 de fevereiro de 1954, com uma grande festa na cidade de Vera Cruz.
Diário – Nesse tempo, com certeza o senhor não tinha uma televisão [a TV chegou ao Brasil em 3 de abril de 1950 através de Assis Chateubriand], mas tinha o rádio, cinemas, bailes, shows...
Bento – Por quê?
Diário – Treze filhos? Quem foi o primeiro?
Bento – Chega até ser engraçado, mas não consegui vê-lo nascer. Acontece que fui convocado para servir o Exército em Campo Grande (MS) em 6 de junho de 1954, quatro meses após o casamento. Iria ficar até abril de 1955. O governo de Getúlio Vargas enfrentava muitas dificuldades, clima tenso e a gente lá, fardada dia e noite, de prontidão, na Infantaria. No final do ano consegui uma licença de 10 dias para acompanhar o nascimento da criança. Vim dentro do prazo estabelecido pelo médico. Chegou o último dia da licença e... nada. A criança não nascia. Tive que voltar, senão seria considerado desertor. No dia seguinte, pela manhã, quando já estava de volta a Campo Grande, o Aparecido nasceu (hoje construtor). Só fiquei sabendo depois de 15 dias, via telegrama.
Diário – E os outros?
Bento – Aí já foi tudo normal, sem contratempos. Romilda (costureira), Sidney (serralheiro), Neuza (empresária em Pirituba), Neide (contadora), Rosinei (salgadeira), Bento Filho (carpinteiro em Garça), José Roberto (marceneiro), Wilson (marceneiro) e os gêmeos Luciano (marceneiro) e Luciana (empresária). O Rogério e a Renata faleceram ainda bebês.
Bento – E quantos netos e bisnetos?
Bento – Faço questão de falar os nomes. São 39 netos (Cristiane, Monalisa, Alberto, Daniele, Diogo, Janaína, Thais, Maira, Bruno, Vanessa, Anne, Danilo, Emili, Karina, Larissa, Guilherme, Leony, Louise, Bento A. Neto, Gisele, David, Mirela, Milena, Lucas, Tiago, Diogo,Gabriel, Marina, Giovane, Sarah, Samuel, Nathan, Luana, Mariana, Matheus, João Vitor, Beatriz, Rafael e Joaquim) e 12 bisnetos(Alexandre Filho, Alice, Amanda, Marco Antônio, Henrique, João Gabriel, Luiz Felipe, Lyvia, Bruna e Esther). [a memória traiu e Bento se esqueceu de dois bisnetos].
Diário – Se a entrevista se prolongar, vai ficar pouco espaço para as fotos. Percebe-se que senhor nunca gostou de falar sobre futebol e política. Por quê?
Bento – Nunca fui do “ramo”. É lógico que sempre torci pelo Mac, e acredito que esse ano a diretoria acerte nas contratações. Quanto à política, a gente acompanha as mudanças na Prefeitura. Espero que os novos bairros tenham infra-estrutura suficiente, para que os futuros moradores, principalmente crianças e idosos, tenham uma qualidade de vida digna, sem falta de água, escola, saúde, transporte e outras benfeitorias garantidas pela Constituição.
Diário – Que tal uma mensagem para a população?
Bento – Apenas que sou uma pessoa muito feliz, principalmente por ser mariliense e amar essa terra abençoada. Papai não rastelou dinheiro quando aqui chegou, mas nos ensinou a rastelar responsabilidade, respeito, honestidade e amor ao próximo. O resto deixa que o Homem lá em cima resolve.
Nota do jornalista VADINHO DORETO – Maria Rosa, além do diabete, ressente-se dos efeitos de um derrame ocorrido há algum tempo. Orgulha-se em afirmar que Bento é também o melhor “enfermeiro do mundo”, não descuidando por nada de sua saúde. Nessa história, há um quadro primoroso: a felicidade está embutida nos momentos pequenos, no companheirismo e no afeto. Bento e Maria nasceram encomendados. É indescritível essa cumplicidade, essa vontade dos dois de estarem juntos a cada fração de segundo e de realizar as coisas de maneira bem simples, sempre embalados pelo infinito amor.
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